VÁRIOS OLHARES E SABERES: EFEITOS DO IMAGINÁRIO SOBRE LIDERANÇA NOS PROCEDIMENTOS DE TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO DE LÍDERES ORGANIZACIONAIS.

Gilberto Braga Pereira

3.2    Sobre liderança, imaginário e tecnologia

3.2.1 Correntes teóricas sobre liderança e a tecnologia de preparação de líderes

Bíscaro (1994) surpreende com o “jogo” inusitado entre o título “Empresa não é escola”, que serve de introdução ao seu texto “Métodos e técnicas em T&D”, e a afirmação subseqüente “Não era. Teve de ser”, que dá início a sua narrativa. Ainda que o material não especifique a época a que se refere, o autor desenvolve seus argumentos justificando que “as empresas não dispunham de nenhuma estrutura que lembrasse de longe algum tipo de preocupação com a formação profissional”. Até porque dentre as funções-chaves ditadas por Fayol para a administração não constava a formação. Contudo, “o desenvolvimento econômico e a sofisticação das relações de trabalho, de um lado, e o esforço de guerra (1940-45), de outro, obrigaram as empresas a rever seu papel em relação à mão-de-obra e à formação de novos quadros de comando” (ibidem, p. 211).


Seguindo uma outra vertente, Carvalho (1994, p. 81), ao tematizar os T&D estratégicos, enfatiza que o grande “inventor” do gerente foi Taylor: “[...] com sua gerência científica ele definiu o divisor de águas entre as atividades de um gerente e as de uma operador”. Passaram-se os anos, e o operador continuou sendo o foco principal dos treinamentos operacionais (para prepará-lo para o posto de trabalho), e o gerente teve o seu treinamento gerencial cada vez mais sofisticado.
Especificamente no Brasil, o T&D de pessoas,  ainda que já possua quase um século de história (MALVEZZI, 1994), ressente-se da falta de “memória” para auxiliar, orientar e indicar caminhos aos profissionais que se ocupam da gestão de pessoas nas organizações modernas (PIZARRO, 1982). Em conseqüência, a estruturação de técnicas, métodos e sistemas compatíveis sofre (1) por não ser prioridade na maioria das empresas e (2) por não obter o devido reconhecimento como meio para evolução social e como influência nas transformações necessárias ao incremento produtivo. Portanto, vale indagar o que se tem feito a esse respeito e o modo como se tem feito, além de apresentar novas tendências.
É provável que ainda predominem esforços de preparação de pessoas bastante focados em seminários e cursos, mesmo que se considere a “[...] passagem do paradigma da administração científica para um novo paradigma emergente desde os anos 80” (MALVEZZI, 1994, p. 21).


A capacitação profissional em geral, e de líderes em particular, permanece um desafio crucial, que teve origem no processo de administração científica. Para atender as demandas crescentes de especialização, o treinamento passou a ser sistematizado e, mediante a correlação entre competência e otimização de resultados, construiu a sua história a partir do estabelecimento da administração científica (know-how) até o comportamentalismo (know-why) (MALVEZZI, 1994). Segundo o autor, a partir da década de 1930 o status do treinamento foi integrado à estratégia empresarial, e nos anos 1970, face ao incremento da competitividade e à rápida evolução da tecnologia, os negócios passaram a depender mais da capacitação profissional.
Até a IIa Guerra Mundial confiava-se que as pessoas adquiriam, aos poucos e naturalmente, o que fosse necessário para serem gestoras (KOONTZ; O’DONNELL, 1978). “Este mundo ideal dos ‘capitães’ de indústria, baseado num sistema econômico da era vitoriana, foi rudemente abalado nos anos de depressão que se seguiram a 1930. Os executivos perderam sua aura de onipotência”. (ibidem, p. 81).


Sob a influência do modelo científico de administração e das Teorias dos Traços, até os anos 1960 predominou uma preocupação em se capacitar para o exercício de uma tarefa específica. O saber fazer vinha associado a métodos de treinamento que focavam o ensino de procedimentos e o adestramento de habilidades. No que se refere especificamente ao treinamento de gestores, por exemplo, “muitos experimentos e teorias resultaram desse esforço, como se pode constatar na proposta do TWI e na Pesquisa Ação, duas metodologias bastante conhecidas” (MALVEZZI, 1994, p. 18).
Sob influência de tais pressupostos (os das Teorias dos Traços e dos Estilos), Koontz e O’Donnell (1978) sugerem como abordagens essenciais no treinamento de executivos: (1) progressão planejada (plano de carreira e sucessão); (2) rodízio (job rotation: em trabalhos que não exijam supervisão, em tarefas de observação, entre cargos administrativos de treinamento, permanência temporária como assistente, remanejamento lateral); (3) criação do cargo de assistente; (4) abordagens psicológicas (representações de papéis e discussões não-estruturadas); (5) promoções temporárias; (6) comissões e conselhos de nível médio; (7) programa de conferência (seminários e cursos); (8) programas universitários para gestores (convênios com universidades) etc. Depreende-se nessas abordagens um foco bastante evidente no saber fazer, extremamente compatível com o paradigma taylorista-fordista.


A aceitação das Teorias dos Traços e das Teorias dos Estilos, segundo Bergamini (1994), fez com que, nesse estágio, os esforços metodológicos de preparação de líderes se voltassem para a estruturação de meios que pudessem mapear o perfil de personalidade, em comparação com um modelo ideal.
Coincidindo com o período entre as duas grandes guerras, o surgimento das Teorias dos Traços acontece concomitante com o aparecimento dos testes psicológicos (a Psicometria) e das preocupações positivistas com a racionalidade behaviorista entre os comportamentalistas. Na década seguinte todas essas forças culminam no surgimento das Teorias dos Estilos de liderança.
Uma vez que a liderança é concebida como um atributo inato nas Teorias dos Traços ou como um conjunto de habilidades nas Teorias dos Estilos, o enfoque de capacitação reside no estabelecimento de um rol de características, habilidades e qualificações a serem identificadas, exercitadas e treinadas. Na afirmação de Bergamini (1994, p. 32), “parece mais tratar-se de um estudo a respeito daquilo que o bom líder deve ser do que daquilo que realmente ele é”. As atividades de treinamento revestem-se de um sentido restrito de aquisição de habilidades e não de um entendimento da capacitação profissional como um desenvolvimento integral do indivíduo. As habilidades motoras são requisitos presentes nos cargos de operação de fábricas, e as cognitivas e os traços de personalidade predominam no cenário da gerência e dos escritórios (MALVEZZI, 1994, p. 23). O desenho dos perfis  profissiográficos é que se constitui como o alvo dos programas de treinamento.


Nessa perspectiva, o trabalhador foi assumido como um ser fragmentado em habilidades e traços de personalidade. A habilidade está entendida como algo objetivo existente dentro do indivíduo, que ocorreria independentemente de ser descoberto por alguém e que poderia ser mensurado, pelo menos indiretamente (ibidem, p. 22).
A defasagem entre o perfil e o indivíduo indicava as necessidades de treinamento, sustentando a estruturação de programas que “[...] consistiam em conjuntos de exercícios de velocidade, precisão, acuidade e automatismos, transmissão de informações e mudanças de atitudes, tendo em vista aproximar o desempenho do padrão esperado no planejamento” (ibidem, p. 23).
Mesmo após o surgimento das Teorias dos Estilos ou Tipológicas (anos 1950), os procedimentos para a preparação do nível de gestão e dos demais trabalhadores continuaram com os enfoques em habilidades e funções gerenciais. A esse respeito, assim se expressa Bergamini (1994, p. 44):


Blake e Mouton  [...] planejaram um programa  de treinamento gerencial e desenvolvimento organizacional sob o nome de ‘Grid Gerencial’, no qual propõem a interligação dessas duas orientações [tarefa e relacionamento] do comportamento de liderança [...] Embora esse enfoque não esgote senão muito parcialmente a realidade que delineia o processo de liderança, ainda muitos programas de treinamento exploram o aspecto de estilos de liderança especialmente no sentido de proporem que existam alguns deles que sejam melhores do que os outros. Esses programas enfatizam que se deva treinar as pessoas no sentido de exibirem um conjunto de comportamentos tidos como sintomáticos ao ‘perfil ideal’ de chefia. Muitos deles chegam a afirmar, infelizmente sem nenhum apoio na pesquisa empírica nem tampouco nos pressupostos fundamentais da psicologia, que as pessoas conseguem mudar a sua maneira de ser ao sabor das exigências das situações que enfrentam.
Em suas conclusões, a mesma autora chega a enfatizar que, durante o período em que tiveram seu apogeu, tais teorias inspiraram os conhecidos “pacotes” de treinamento de líderes organizacionais, que pouco ou nenhum resultado objetivo produziram. Para ela, o que se conseguiu foi apenas violentar “as diferenças individuais de personalidade de muitos chefes, procurando transformá-los em grandes líderes” (ibidem,1994 p. 68).
Acrescenta-se apenas que, em especial na última fase (“pós-industrialização”), desenvolve-se um conceito-chave - a noção de competência -, em contraponto ao de qualificação. Esse tema será desenvolvido adiante.
Mesmo as experiências de Hawthorne não alteraram a visão reducionista do ser humano (conjunto de atributos ou habilidades). Portanto, até as décadas de 1950 e 1960, permaneceu um forte caráter regulatório nas ações de treinamento, que só se esmaece, mas não finda, com o aparecimento da abordagem sistêmica do processo organizacional (KATZ; KAHN apud MALVEZZI, 1994, p. 24).


O grande ganho, entretanto, refere-se ao fato de que a abordagem sistêmica permitiu a distinção entre treinamento e desenvolvimento. Assim, a capacitação deixa de ser somente fornecimento de informações e aquisição de habilidades, para assumir status de ampliação de potencialidades, com vistas ao acesso a posições hierárquicas superiores. Enquanto o treinamento passa a se referir ao aperfeiçoamento do desempenho no mesmo cargo, o desenvolvimento passa a traduzir uma maior identificação com a companhia (MALVEZZI, 1994, p. 25). Nesse contexto, o autor entende que a noção de desenvolvimento emerge associada muito mais à carreira do que à formação da identidade profissional, o que tem conseqüências importantes ideologicamente.
Pode-se dizer que a condição humana foi assumida de forma mais realista em sua complexidade, porém não foi assumida em sua indeterminância, porque a realização profissional e pessoal ficou configurada em função do acesso aos níveis de poder. [...] A capacitação profissional emerge como uma questão do recurso humano para a empresa e não como uma questão do ser humano (ibidem, p. 25).


Desse modo, até os anos 1970, consta a idéia de formação bastante associada a atributos ou habilidades, ainda que articulados de forma complexa (uma sutil diferença do que até então se via). O caráter regulatório incidente tanto sobre pessoas como sobre tarefas desloca-se para o controle sobre resultados, trazendo novas implicações para a ação de T&D.
Na visão de Malvezzi (1994), a política de modernização que se observou nas empresas representa a emergência de um novo paradigma de gestão que, contrapondo-se ao de “controle-e-comando”, pode ser resumido nos elementos: (1) competência, (2) tecnologia, (3) parceria e (4) flexibilidade, o que força a substituição do modelo de capacitação focado em tarefas pelo que é chamado de missão ou alvo a ser atingido pelo sujeito. Substancialmente passa-se a cobrar mais resultados, criatividade e visão de longo prazo, vinculados supostamente ao incremento da autonomia. A capacitação profissional é (re)posicionada de uma abordagem regulatória para uma de auto-regulação. Como visto no capítulo 2, ao se tematizar autoridade na visão de Sennett (2001), há um deslocamento da imagem paternalista de gestão para a de autoridade autônoma, no sentido de atribuir ao próprio sujeito a responsabilidade por sua auto-regulação.


Bergamini (1994) considera um avanço o fato de que, já nos anos 1960, as Teorias Contingenciais de Liderança se faziam presentes. Entretanto, ao mesmo tempo, lamenta o pouco progresso ocorrido em relação aos procedimentos metodológicos de formação de líderes dentro das organizações:
Infelizmente, a não existência de comprovação científica de que as pessoas possam mudar, de uma hora para outra, não tem sido suficientemente difundida, dando assim oportunidade ao aparecimento de programas de treinamento e desenvolvimento de liderança que chegam a resultados não somente duvidosos como também, muitas vezes, verdadeiramente problemáticos (ibidem, p. 72).
Voltando à questão dos conceitos de qualificação e competência, embora não se possa localizar um autor que tenha sido o “criador” dessa última noção, McClelland (apud DAÓLIO, 2004 p. 172) é tido como um precursor de seu uso nas práticas de gestão. Tomando de empréstimo a palavra competência, largamente utilizada pelo senso comum, não propõe exatamente um conceito mas mecanismos que funcionem como precondições para se construírem instrumentos capazes de aferi-la, além de “algumas pistas” para a sua descoberta.
Daólio (2004, p. 178) aponta a falta de consenso acerca do conceito. Não obstante se encontrem visões distintas sobre o mesmo, o autor tece considerações e estabelece correlação entre a visão de McClelland e o senso comum:


[...] é aquela [pessoa] que entrega, que faz bem aquilo que esperamos que ela faça.[...] um funcionário competente é aquele que sabe o que está fazendo e o faz conforme esperado, é aquele que entrega algo dentro de padrões de tempo e de qualidade esperados [...] este entendimento de competência tem como ponto de referência algo que podemos chamar de comportamento-padrão; o que McClelland propõe como ponto de referência é o comportamento excelente, que entrega mais do que o padrão.
Por outro lado, na perspectiva jurídica, é ainda Daólio (ibidem, p. 179) quem estabelece correlações entre o uso da palavra para traduzir jurisdição ou autoridade legal, na tomada de decisão, e o seu uso, no ambiente das organizações, para designar atribuições ou responsabilidades de um cargo específico, setor ou área da empresa. Contudo ressalva o risco de se fazer esse tipo de correlação, à medida que a “complexidade de uma competência [...] não deve ser confundida com atribuições ou responsabilidades de cargo, pois sua medida se vincula à complexidade do comportamento” que se é capaz de apresentar e não à posição ocupada.


Outro viés discutível para o uso do termo é o acrônimo C.H.A. (Conhecimentos, Habilidades e Atitudes), amplamente utilizado por profissionais de gestão de pessoas e que, na visão de Daólio (2004, p. 180), “tem sido muito caro e precioso para quem lida com treinamento”, pois os vocábulos que o formam servem de parâmetros a partir dos quais se estruturam os programas de conteúdos para transmitir conhecimentos - aqueles metodologicamente estruturados com base em exercícios e simulações - e para treinar habilidades e as técnicas de dinâmica de grupo para desenvolver atitudes. Críticas são apontadas no tocante a essa vinculação de conceitos, porém Daólio (2004, p. 181-182) se rende parcialmente a ela, afirmando que:
No Brasil, parece que há uma concordância, nos meios acadêmicos, de que competências nada mais são que o C.H.A.
Esta abordagem por meio do C.H.A. não busca descobrir as competências, tal como definidas por McClelland e utilizadas pelas consultorias que mantêm coerência com a abordagem proposta por ele. O C.H.A. capta o que é comum, o que é padrão para um cargo ou função, pois baseia-se mais em descrições de tarefas e em observações do comportamento padrão, quando não o faz apenas pelas atribuições do cargo. Ao passo que a metodologia de competências (como propostas por McClelland) utiliza uma análise acurada dos comportamentos dos melhores, quando comparados com os padrões, procura descobrir os comportamentos que excedem, que trazem resultados superiores, e visa construir Modelos de Competências que serão utilizados para selecionar pessoas, para treiná-las etc.


O autor segue analisando o conceito, referindo-se à expressão core competences,comumente traduzida como: “competências essenciais, organizacionais, estratégicas etc.”. Atribuindo-a a Hamel e Prahalad , Daólio (2004, p. 182) esclarece que ela diz respeito “às capacidades que as empresas devem desenvolver em seu ambiente para que possam vencer no futuro, chegarem à frente das demais empresas e criar novos mercados”. Esses conceitos, para o autor, também deram origem a abordagens de Gestão por Competências que cuidam de (a) identificar as competências estratégicas para a organização, a partir das quais (b) se desdobram as departamentais, por função e as individuais, para então (c) prover recursos e desenvolver tais competências nas pessoas e áreas da organização.
Não obstante se observem vários modelos e formas que nela se desdobram e alcançam materialidade, a noção de competências é pois um conceito que, tendo surgido a partir da década de 1980, está em estreita relação com o modo de produção capitalista, pelo menos segundo Ramos (2002, p. 39):


As mudanças tecnológicas e de organização do trabalho por que passam os países de capitalismo avançado a partir dos meados da década de 80 configuram o mundo produtivo com algumas características tendenciais: flexibilização da produção e reestruturação das ocupações; integração de setores da produção; multifuncionalidade e polivalência dos trabalhadores; valorização dos saberes dos trabalhadores não ligados ao trabalho prescrito ou ao conhecimento formalizado. [...] [Nesse contexto] recupera-se o debate sobre a qualificação como relação social, ao mesmo tempo em que se testemunha a emergência da noção de competência atendendo, pelo menos, a três propósitos: a) reordenar conceitualmente a compreensão da relação trabalho-educação, desviando o foco dos empregos, das ocupações e das tarefas para o trabalhador em suas implicações subjetivas com o trabalho; b) institucionalizar novas formas de educar/formar os trabalhadores e de gerir o trabalho [...] c) formular padrões de identificação da capacidade real do trabalhador para determinada ocupação, de modo a que possa haver mobilidade [...].
Após considerar autores diversos que atribuem um conotação de atualização, rejuvenescimento, substituição etc para o termo, Ramos (2002) prefere conceber o surgimento da noção de competência como um deslocamento, revelando-se bastante crítica ao modelo que, em sua visão, é limitado. Seu impacto tanto no mundo do trabalho como no da educação é inquestionável; entretanto, resgata a dimensão utópica de que é fundamental a noção de qualificação como relação social, articulando a questão de formação humana a um projeto social mais amplo.
Tomasi (2004) chama atenção para o fato de o meio acadêmico no Brasil só ter aberto maior espaço para a competência a partir de meados dos anos 1990. E, ainda assim, como quando de seu surgimento, uma certa desconfiança persiste. Segundo o autor, essa desconfiança talvez encontre ressonância no fato de ter sido a escola o espaço de disseminação do modelo das competências “e dos princípios por ele portados, materializados, inclusive, em decisão das autoridades governamentais nacionais da educação de implementá-los em nossas salas de aula (Diretrizes Curriculares do Ensino Superior, Parâmetros Curriculares Nacionais, decreto-lei 2.208).” (ibidem, p. 10). E continua, na mesma página, a explicitar que essas primeiras reflexões, estimuladas por uma iniciativa governamental ou não, tiveram a preocupação de considerar o componente ideológico implicado “e sua intimidade comprometida com o modelo neoliberal e sua face mais perversa e excludente, o que não deixa de ser verdade” .


De todo modo, é o mesmo Tomasi (2004, p. 13) quem tece uma consideração importante:
A competência, diga-se de passagem, não é uma invenção a serviço de alguns interesses, por mais que ela possa se prestar a isso; tudo parece indicar que ela sempre existiu. Os estudos que tratam o termo etimologicamente dão conta disso e muito mais os que se dedicam ao estudo do trabalho nos períodos que anteciparam a taylorização ou que marcaram o artesanato e as corporações de ofício, ainda na Idade Média. [...]
Os estudos sobre a qualificação, por sua vez, [...] não se preocuparam, por exemplo, com os saberes que se escondiam por trás das qualificações e, muito menos, como eram construídos.[...]
Para o modelo taylorista, as qualificações, definidas pelo posto de trabalho e construídas com ajuda da escola, tornavam, baseadas em um mesmo diploma, todos os trabalhadores iguais.
Como atesta o autor, o conceito de qualificação contribuiu para uma coletivização do trabalhador, ou pelo menos as suas representações tinham nele um elemento aglutinador, visto que o posto de trabalho os unificava em uma identidade comum. Nesse sentido, houve ganhos substanciais. Contudo, reconhecer diferenças entre pessoas não significa necessariamente render-se à desigualdade. Reconhecer um modelo que leva em conta a subjetividade do trabalhador e seus saberes é reconhecer elementos que agregam valor à produção. É nessa vertente que Tomasi (2004) procura defender a idéia de que não se trata de substituir um conceito pelo outro, mas de integrá-los, o que de qualquer forma não vai eliminar o uso ideológico que possa ser feito deles.


No tocante às iniciativas de preparação de liderança ou mais especificamente ao modelo de educação e treinamento mais consonante com o conceito de competências, tem-se a proposição do relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI e os Parâmetros Curriculares Nacionais – Temas transversais do MEC (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO, 1998).O documento distingue quatro pilares da educação para o século XXI: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos.
O propósito de se discutir brevemente o modelo de competências em paralelo ao de qualificação foi somente de atualizar as abordagens aplicadas ao T&D. Destarde, acredita-se que não cabe aqui entrar em análises pormenorizadas, pois isso foge à intenção desta pesquisa, cujo objeto, somente para recordar, consiste em analisar os efeitos do imaginário sobre lideranças na tecnologia de preparação de líderes.


Seguindo no mapeamento de autores implicados com o tema, encontra-se em Bennis (2002), em seu artigo “A nova liderança”, a idéia de que a liderança é aprendida pelo exemplo. Valendo-se dos resultados de um estudo realizado na University of Pensylvannia, que “verificou que um aumento de 10% na formação educacional leva a um aumento de 8,5% na produtividade” enquanto “um aumento semelhante no investimento de capital permite obter um aumento de menos de 4% na produtividade”, o autor intencionou sustentar a sua consideração de que
[...] a chave da vantagem competitiva para o futuro será a capacidade de liderança para criar o modelo organizacional e a arquitetura social que permitam gerar capital intelectual. [...] a liderança deixou de concentrar-se na produção eficiente de bens e serviços. A tarefa mais importante para o líder daqui por diante será, em minha opinião, reunir pessoas e desenvolver os relacionamentos para criar uma comunidade que produza riqueza (ibidem, p. 34-35).
Kotter (2002, p. 28), por outro lado, revela-se cético a respeito da possibilidade da capacitação de lideranças, assegurando ser possível tão-somente a preparação das “[...] pessoas para desenvolver todo e qualquer potencial de liderança que possuam [...]”. Considera que, até o momento, o que se observou foram iniciativas voltadas à capacitação de gerentes e não de líderes. Aliás, há uma certa contradição em sua posição, visto que acrescenta: “Como acontece com toda habilidade, é necessário treinar a liderança” (ibidem, 2002 p. 28). De todo modo, o autor descreve etapas que, no seu entendimento, devem ser ultrapassadas para que se possa treinar o líder: (1) clarificar o conceito de liderança, (2) definir sua representatividade no contexto do ambiente e da economia, (3) ajudar pessoas a identificarem suas habilidades e atitudes comparativamente ao que um “líder realmente bom” deveria fazer e (4) mostrar quais experiências vividas por outros líderes ao longo de suas carreiras são representativas.


Em pesquisa divulgada pela McKinsey & Co. (2002, p. 86), depreende-se que grande parte das empresas não apresenta competência no desenvolvimento de seus executivos: “[...] apenas 3% dos 6.000 executivos que ocupam os 200 cargos mais altos em 50 grandes empresas dos Estados Unidos afirmaram que sua companhia consegue criar profissionais de talento de forma rápida e eficaz”. Algumas confiam que pessoas com desempenho superior ascendem naturalmente, e outras consideram que contratar talentos do mercado constitui estratégia mais promissora. Esquecem-se, contudo, dos riscos inerentes à perda de coesão cultural e memória institucional, além da possibilidade de se onerar o processo de gestão de pessoas.


Para a McKinsey & Co. (2002), algumas empresas vêm desenvolvendo suas lideranças através de procedimentos diversos, como feedback, preparação e orientação individual, cursos e seminários, dentre outros, assegurando porém que o mais importante é a experiência prática em determinadas funções que possibilitem: (1) espaço de comando (autoridade e responsabilidade) e manobra (alcance e variedade), (2) múltiplos cargos que apresentem desafios e (3) referência de colegas e superiores.
No levantamento da McKinsey, 48% dos executivos de recursos humanos disseram que a maioria de seus colegas de outras áreas acha que o desenvolvimento é meramente uma questão de programas de treinamento. [...] Mas programas de treinamento não produzem grandes executivos, com exceção de dois tipos – o aprendizado ativo, estruturado em projetos reais de trabalho, e o treinamento inicial em habilidades gerenciais, que visa fornecer os recursos e os conhecimentos básicos e facilitar mudanças de carreira. [...] Outros tipos de programas também podem ser interessantes. Universidades empresariais [...] podem ajudar a criar culturas empresariais fortes, alinhar as empresas a suas estratégias, disseminar práticas melhores, criar redes pessoais e fomentar programas de mudança. Esses, porém, não são os mecanismos que impulsionam o desenvolvimento de capacidades individuais. O tipo de treinamento que realmente faz diferença não tem nada a ver com programas e está ligado, sim, ao treinamento informal que ocorre nas empresas, com preparação e orientação individualizadas (McKINSEY&Co., 2002, p. 88).
No novo paradigma emergente, tem-se a configuração do know-why,em que o processo de produção passa, ainda que em parte, das estruturas administrativas e gerenciais para os grupos de trabalho (MALVEZZI, 1994). O trabalhador (um pouco mais próximo de sua condição de sujeito) deixa de ser mero seguidor de manuais, sendo solicitado a escolher caminhos e a tomar decisões. Nessa perspectiva, a capacitação profissional precisa ser reconceituada
[...] como algo que vai além de aquisição de informações, mudanças de atitudes e desenvolvimento de habilidades, para incluir a reelaboração de significados e a revisão dos referenciais de ação. Tende-se a organizar programas de treinamento menos dirigidos a habilidades específicas e mais voltados para a pessoa como um todo (ibidem, p. 29).
Portanto, a proposta mais atual, decorrente dos enfoques contingenciais sobre liderança, não só reconfigura o papel e o entendimento do fenômeno da liderança em si, como obviamente demanda uma revolução nos procedimentos metodológicos de treinamento e desenvolvimento. Bergamini (1994, p. 141) aponta como alternativa e ponto de partida o processo de autoconhecimento, chegando mesmo a explicitar que
a experiência com programas de treinamento e desenvolvimento de pessoal dentro das organizações mostra que a utilização de formas de diagnóstico de estilos comportamentais facilita e dinamiza a formação do vínculo líder-subordinado e vice-versa. Uma vez havendo, de ambos os lados, a vontade de formar um vínculo eficaz, o conhecimento dos estilos comportamentais tem conseguido apressar o processo de amadurecimento do relacionamento entre os dois. Com isso, oferecem-se maiores recursos aos chefes não só de se tornarem líderes mais facilmente aceitos como também é dada a oportunidade ao liderado de caracterizar melhor suas reais expectativas com relação ao comportamento do superior.
Gil (2001) e Nowack e Wimer (2002) introduzem a noção de coach para relatar o mesmo tipo de contexto ao qual Bergamini (1994) se refere, descrevendo o procedimento de coaching como alternativa ao processo de capacitação e preparação de pessoas no mundo do trabalho.


Quando ele (coach) detecta uma discrepância entre a realidade de um profissional e onde este deve chegar, passa a dar subsídios para que supere suas dificuldades. [...] pode oferecer condições para que seus clientes promovam um autodiagnóstico e aprimorem sua capacidade de raciocínio e análise, visando torná-los capazes de estabelecer metas, determinar prioridades e identificar as melhores soluções para os problemas que se apresentam no dia-a-dia (GIL, 2001, p. 282).
Sobretudo quando as carências de desempenho não correspondem a defasagens no tocante a habilidades técnicas e sim, às de liderança, o coaching com propostas individualizadas e personalizadas  tende a otimizar a performance gerencial. Além do que, revela-se uma abordagem de capacitação mais coerente com um paradigma contrário ao modelo de “comando-e-controle”, enfatizando o trabalho em equipe, a colaboração e a participação para a solução de problemas e a tomada de decisão (NOWACK; WIMER, 2002, p. 94).


Sennett (1999) é bastante contundente em suas críticas aos modelos flexíveis baseados em equipes e, particularmente, ao líder como treinador. Aliás, considera “[...] ‘líder’ a palavra mais esperta no moderno léxico administrativo; o líder está do nosso lado, em vez de ser nosso governante” (ibidem,  p. 132). Segundo ele, a visão do coach ou do líder como treinador é um artifício do qual o chefe faz uso para evitar se responsabilizar, explicitando que, embora o poder continue presente, a autoridade está ausente, é indefinida, está diluída. “[...] essa ausência de autoridade deixa livres os que estão no controle para mudar, adaptar, reorganizar, sem ter de justificar-se ou a seus atos” (ibidem,  p. 137). Portanto, o que Sennett (1999) critica é o uso ideológico que se tem feito do conceito de liderança.
Em certa medida, se não há unanimidade quanto ao conceito e à abordagem teórica sobre liderança, tampouco se encontra consenso quanto a se é possível seu ensino. Alguns autores, como já comentado, optam por uma visão funcionalista da liderança, enquanto outros preferem discutir criticamente o significado do fenômeno em si. Não obstante esses aspectos, não cessam as proposições de programas voltados à preparação de líderes nas organizações, e vêem-se florescer mais e mais consultorias especializadas.


Nas páginas seguintes, ao se focalizar a concepção de Bolt (2004), evidencia-se a materialidade da noção de competência na formação de líderes em contraponto à de qualificação, referida anteriormente.
Dentre os autores que consideram que se vive atualmente uma crise no desenvolvimento de lideranças, encontra-se Bolt (2004). Suas pesquisas confirmam que a educação executiva, outrora relegada a planos secundários, tornou-se, na atualidade, fator de preocupação das empresas. “Numa época em que a liderança é mais crucial do que tudo para a nossa própria sobrevivência, existe uma grave carência de pessoas qualificadas para liderar corporações [...]” (ibidem, p. 169). Ele considera, pois, que na entrada do século XXI convive-se com um déficit de profissionais-líderes capazes de lidar com as complexidades, a volatilidade e as novas regras que envolvem a dinâmica das relações dentro e fora das organizações empresariais. Referindo-se ao processo de capacitação com a expressão “educação executiva”, o que sugere uma abordagem muito mais abrangente, refletida no saber fazer e no saber ser,afirma que, se os métodos de T&D estão ultrapassados, a atitude em relação ao processo de preparação não permaneceu estática, pois as “empresas com visão de futuro voltam-se cada vez mais para programas internos e personalizados de educação de executivos, a fim de ajudá-los a alcançar seus objetivos estratégicos e a agir como catalisadores da mudança organizacional” (ibidem, p. 172).
Desse modo, na visão do autor, trata-se muito mais de uma crise de desenvolvimento de lideranças do que de uma crise de liderança, cuja falha principal reside no fato de o treinamento (1) ser incompleto (concentrado basicamente em habilidades), (2) oferecer “um remendo rápido” (seminários isolados e descontínuos), (3) ser genérico e ultrapassado (desconsideração dos problemas reais) e (4) ignorar a liderança (caracterizando-se como treinamento gerencial orientado funcional e tecnicamente).
Bolt (2004) tece críticas severas aos enfoques que, baseados em treinamento na função, contribuem tão-somente para a formação de profissionais unidimensionais, com uma perspectiva eminentemente funcional-técnica. Como alternativa, sugere o enfoque tridimensional para a formação de executivos, que pressupõe o desenvolvimento de habilidades (1) profissionais (mentalidade e recursos necessários para identificar e abordar desafios profissionais globais), (2) de liderança (necessária para conduzir a organização ao futuro de modo confiável) e (3) de eficácia pessoal (necessária para atingir a excelência, o equilíbrio e a contínua renovação).
Enfim, o que se observa entre os autores é um entrelaçamento de conceitos próprios à modernidade, que trazem em si, além de outros, um componente ideológico circunscrito nas várias ciências em que se baseiam e nos conceitos que geram. E não é recente o uso que as ciências sociais têm feito de conceitos surgidos em outros campos do conhecimento; mais do que isso, absorvem concepções paradoxais que simultaneamente nutrem o imaginário e a representação social acerca da liderança e são por eles nutridas.
Inclusive, é relativamente simples identificar na literatura especializada autores que usam do recurso da metáfora para entender a organização como sistema biológico, mecânico, cultural, em rede etc. Afinal,  como já referido na Introdução desta dissertação, as imagens e as metáforas são formas de se encarar a realidade, ao mesmo tempo em que fornecem também uma estrutura para a ação (MORGAN, 1996). São esforços que apontam para o aprofundamento do estudo dos fenômenos organizacionais e para a busca de compreensão do funcionamento do mundo real, que vêm associados a representações imaginárias.
Conforme sugere Morgan (1996), há uma estreita relação entre o modo de pensar e a ação que se empreende, e a palavra imaginação pode ser um elemento poderoso para revelar o fenômeno básico que subjaz, o imaginário social sobre liderança. São vários saberes e vários olhares. Sob esse enfoque, o da reconfiguração de significado, encontra-se a ponte entre o imaginário e a ação de capacitação e alinham-se as três tendências para T&D identificadas por Malvezzi (1994): (1) os programas têm de reproduzir o mais fielmente possível o ambiente de trabalho (por isso o treinamento on the job toma força); (2) ensinar “[...] a pensar, a reelaborar constantemente seus significados e a aprender a fazer autocrítica” (ibidem, p.29) torna-se o desafio essencial para o profissional de T&D; e (3) a aprendizagem depende igualmente de fatores internos e externos ao indivíduo, o que abre espaço para as chamadas práticas interativas e de desenvolvimento de redes de relacionamento.
Finalizando, especificamente em relação aos métodos, Bíscaro (1994) ressalva que a grande maioria dos autores manifesta pouco ou nenhum consenso quanto às denominações a serem conferidas às práticas de T&D. Palavras tais como “estratégias”, “táticas”, “programas”, “métodos” e “técnicas” não raro são usadas como equivalentes, e, sobretudo não há um cuidado em criar categorias que possam ordená-las, quaisquer que sejam os critérios. Nesse panorama, o autor opta por adotar uma proposta feita por Auren Uris , que classifica as técnicas segundo os caminhos ou modos de aprender. Esses modos de aprendizagem, por sua vez, associam-se  a recursos básicos predominantes e que determinam quatro orientações metodológicas (QUADRO 7).
A convivência concomitante dos vários métodos no processo de aprendizagem é destacada por Bíscaro (1994), que ressalta, inclusive, sua natureza paralela e que os mesmos ocasionalmente se cruzam, superpõem-se e fundem-se, mesmo que preservem suas características originais.
Uma vez traçado um cenário amplo dos procedimentos metodológicos de T&D em correlação com as correntes teóricas sobre liderança, resta discutir um pouco mais a relação possível entre imaginário e tecnologia, o que será feito a seguir.


KATZ; KAHN (1970) apud Malvezzi, 1994, p. 24. O autor não inclui a referenciação completa e normalizada da obra citada.

MCCLELLAND, David C. Introduction to Coding: testing for competence rather than for intelligence. The Journal of NIH Research, 1973. apud Daólio (2004, p. 172).

HAMEL; PRAHALAD. Daólio (2004, p. 182). O autor não inclui a referenciação completa e normalizada da obra citada.

URIS, A. Formação de dirigentes. Ibrasa, 1966.

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